As máscaras identidade criativa de uma região

“ Picasso baixa à rua e torna-se grotesco, ridiculariza-se, faz figuras disformes.

As máscaras e disfarces são ferramentas de grande utilidade porque é nas ruas

e nas noites de Carnaval que libertamos as nossas limitações.”

José Lebrero, Diretor Artístico do Museu Picasso

 

É com prazer que a Fundação A LORD convoca os visitantes para uma leitura interpretativa das obras da pintora Balbina Mendes que têm por base as máscaras da região de Trás-os-Montes e Alto Douro.

A artista evoca uma memória pessoal e coletiva e direciona o nosso olhar para um aspeto sociocultural da identidade transmontana, acrescentando valor a uma herança imaterial para as próximas gerações.

As pinturas a óleo sobre tela, com grande expressividade pictórica, remetem-nos para o seu objeto de inspiração a máscara.

O acolhimento desta mostra na Instituição tem como objetivo dar a conhecer de forma indireta a cultura de uma região, sempre inspiradora e propiciadora de intercâmbios, que levarão, seguramente, à realização de outras iniciativas de caráter cultural.

A Fundação A LORD expressa, por este meio, palavras de reconhecimento à artista Balbina Mendes pela oportunidade de partilharmos parte da história etnográfica da região de Trás-os-Montes e Alto Douro, através da arte.

Francisco Moreira da Silva, Presidente da Fundação A LORD

 

Devir Espiritual

Vestimos o hábito, colocamos a máscara e saímos para a rua dançando, num gesto de intervenção social, cultural e pessoal. Somos espíritos que se libertam! Somos a celebração da vida!

Os caretos Transmontanos, que Balbina Mendes pinta, são a pura essência de uma sociedade que permanece viva, que se demora, mesmo que resiliente para não sucumbir a pressões proto contemporâneas do ser igual a toda a gente. É existir contra todas as expectativas na continuidade de um tempo que parece não mais existir, que parece não mais encaixar na anormalidade dos dias, repletos de lugares comuns e triviais interesses.

Tal como as personagens que representa, Balbina é uma resistente que não se conforma com a natureza superficial dos dias, dos lugares sem referência e do tempo sem tempo. Balbina pinta a permanência do ritual, do profano que ambiciona o espiritual, da força primordial, numa autenticidade que compreende origem, formação e emoção.

A pintura de Balbina ocupa primeiramente este lugar de preservação da memória cultural, da sua cultura, para depois evidenciar que cada pintura é em si o vestir de um hábito, do realizar de uma dança. Mas contrariamente às suas personagens, aqui a autora retira a máscara a máscara do quotidiano e segue objetivamente a busca da origem, do intemporal, da emoção pura. E, por isso, cada pintura é mais uma etapa de uma busca, cada pintura é um devir espiritual.

Domingos Loureiro, in “As Artes Entre As Letras”, 27 de janeiro de 2016

 

Memória descritiva “ Máscaras, Mitos e Ritos”

O desenvolvimento desta série de pinturas assenta nos rituais com máscaras do solstício de inverno, do nordeste transmontano de onde sou oriunda.

Cresci aprendendo a respeitar tradições ancestrais que caracterizam o modus vivendi dos meus antepassados, transmitidas de geração em geração e que, hoje, são reconhecidas pelo caráter único, distintivo e autêntico.

São misteriosos, por vezes, os impulsos que nos levam a fazer escolhas, e entender a relação com os outros e com o mundo, também passa pelas opções artísticas. Trazer a máscara para a pintura transcende os seus aspetos formais ou cromáticos, na medida em que transporta consigo símbolos que influenciam e interferem na vida, significantes da interpretação do mundo e da relação do homem com a alteridade. O meu fascínio pela máscara dos rituais de inverno remonta a 2007, desde a série Máscaras Rituais do Douro e Trás-os-Montes.

Pensar a pintura, recorrendo à máscara ritual, é uma motivação que se manteve, na concretização de Máscaras, Mitos e Ritos e que veio a servir de trampolim para a atual série de pinturas em curso, O Rosto Máscara Intemporal.

Balbina Mendes 

 

OBRAS EM EXPOSIÇÃO

Máscara de Pera Dourada, óleo s/ tela, 120 x 90 cm

“… Estes caretos, representando o Diabo, temido nas suas atitudes, nas suas liberdades e nas suas imunidades, aterram as aldeias com as suas correrias, os seus saltos e os seus gritos, atroam os ares com as pancadas violentas das mocas nas portas que não se abrem à sua intimação, nos cômoros que orlam os caminhos, ou nos troncos já ocos dos velhos castanheiros – porque só eles têm o poder oculto, embora ignorado, de afugentar os espíritos que infestam os campos, de tornar produtivas as terras cultivadas, de expulsar as longas trevas do período invernal”.

Sebastião Pessanha, in “Mascarados e Máscaras Populares de Trás-os-Montes”, 1960 

 

Máscara de Lazarim I, óleo s/ tela, 41 x 33 cm

“A máscara (…) não é, na sua origem, a representação de um ser humano. É antes a figuração de um princípio meio sagrado meio profano, que deverá associar-se a um corpo de homem, antropomorfizar-se, para ganhar existência própria e poder agir à semelhança dos mesmos homens.”

Alberto Correia, in “Máscaras de Portugal”, Lazarim, 2003

 

Festa dos Rapazes, óleo s/ tela, 115 x 95 cm

“As máscaras não eram como os outros tipos de escultura. Nada mesmo. Eram coisas mágicas. As esculturas dos negros eram mediadoras. Contra tudo, contra espíritos ameaçadores, desconhecidos. Os espíritos, o inconsciente (de que na altura ainda não se falava muito), emoção, é tudo a mesma coisa. Percebi porque era pintor. Sozinho naquele museu horrível, as máscaras, as bonecas dos índios vermelhos, os manequins empoeirados. Les Demoiselles d’Avignon deve-me ter ocorrido nesse dia, mas não por causa das formas, mas porque foi a minha primeira tela de exorcismo – sim, absolutamente!”

Picasso em entrevista a André Malraux

 

Máscaras, Mitos e Ritos III, óleo s/ tela, 145 x 115 cm  

Ao colocar a máscara, o indivíduo transforma-se, ganha um novo estatuto que lhe permite poderes e liberdades incomuns. Esse estatuto é-lhe dado pela tradição, e logo pela comunidade que, ao assumi-lo e incentivando-o, é como se por trás da máscara estivesse toda a aldeia. Ignoradas e quase à beira da extinção, as máscaras rituais do Nordeste de Portugal ganharam vitalidade e visibilidade nos últimos anos, graças a um olhar mais atento e culto que percorreu as regiões e percebeu a enorme riqueza antropológica, sociológica e estética que elas constituem.

Djalme Neves, Jornalista, novembro 2013

 

Persona I, técnica mista s/ tela, 100 x 80 cm  

Uma das hipóteses explicativas, que colhe maior consenso, sobre a origem dos mascarados, assenta no culto dos antepassados, considerados detentores privilegiados de poderes sobre as bases essenciais da sobrevivência do indivíduo, no plano físico e mental, velando pela fertilidade, a fecundidade dos homens e dos animais, a manutenção da lei cívica e moral e da ordem por eles modelada e estabelecida.

Benjamim Pereira, in “Máscaras Portuguesas” 

 

Persona II, técnica mista s/ tela, 100 x 80 cm

“ É notório que as máscaras e os mascarados ainda hoje vivos no mundo popular têm antigas origens culturais. A passagem de uma estação a outra, de um ano ao outro, constituiu, durante largo tempo, um momento de crise e de risco na vida social e cultural; o mundo sobrenatural desencadeava-se e as almas dos defuntos voltavam do outro mundo a castigar ou premiar os vivos. E, durante milénios, grupos de homens ou verdadeiras sociedades cerimoniais, em coincidência com esses períodos de risco, envergavam vestimentas rituais que, representando os demónios e antepassados, garantiam e controlavam as relações entre os vivos e o mundo sobrenatural.”

Niko Kuret, in “Maschera”

 

Persona III, técnica mista s/ tela, 100 x 80 cm

Com estas máscaras de madeira, cortiça, metal ou palha convive a máscara que quotidianamente usamos, voluntária ou involuntariamente, de músculos e pele do rosto. Como todas, oculta e mostra. Quando digo “tira a máscara!” estou a dizer “mostra-te como és!”, mas o que sou é com a máscara ou sem ela? A máscara convoca-nos sempre a nós e aos outros e a subversão pode chegar ao ponto de sermos mais reconhecidos pela máscara que o outro nos atribui, do que por nós próprios.

Balbina Mendes, novembro de 2015

 

Rosto Máscara, técnica mista s/ telas e madeira, 170 x 170 cm 

Ah quantas máscaras e submáscaras / Usamos sobre a alma! E quando, a gosto, / A alma tira a última das máscaras, / Será que ela conhece o simples rosto? / A vera máscara não está por trás / Mas espreita por ela conivente. / O hábito aceite, sonolento faz /Tudo o que começa consciente. / Como a criança teme a própria face, / A nossa alma, criança também, / Julga ser de outro o rosto em seu disfarce / E um mundo lhe vem de se enganar; / E até o pensar uma máscara tem / Quando quer a alma desmascarar.

Fernando Pessoa, in “Poesia inglesa”, trad. Luísa Freire 

 

Máscaras, Mitos e Ritos V, serigrafia e pintura s/ papel, 48,2 x 38 cm

“O mascarado ativo tornou-se, pela sua metamorfose, num ser duma ordem superior e, por isso mesmo, goza de uma força e de uma liberdade sem paralelo. Elevou-se acima de toda a lei humana; para ele apenas é válido o direito dos espíritos, que o tornam um possesso sagrado, libertando-o de todos os entraves, dando-lhe a faculdade de destruir e castigar, de ajuizar e denunciar, de tocar e de acariciar segundo a sua vontade. Para ele, tudo aquilo que, em tempo ordinário, é interdito, e deve ser interdito, é então permitido”

Karl Meuli, in “Schweizer Masken”

 

Máscaras, Mitos e Ritos VI, serigrafia e pintura s/ papel, 48,2 x 38 cm

Desde o teatro grego à Itália Renascentista, das celebrações festivas celtas e romanas às sociedades tradicionais europeias, africanas ou índias, sempre a máscara esteve presente, em todos os tempos da História, servindo múltiplas funções sociais em momentos solenes ou críticos na vida de uma comunidade. Inúmeros estudiosos, nas várias áreas do conhecimento, têm procurado a sua origem.

Balbina Mendes, novembro de 2015 

 

Máscaras, Mitos e Ritos VII, serigrafia e pintura s/ papel, 48,3 x 38 cm

Quando a civilização árabe se expandiu, a cultura latina já dispunha do étimo persona para máscara, assim como personatus para mascarado e, simultaneamente, para aparente, falso, fingido. Já a prossopa na Antiga Grécia não tinha apenas a função de disfarce, mas também de amplificador da voz, sendo de grande utilidade, uma vez que as comédias eram representadas ao ar livre.

Balbina Mendes, novembro de 2015 

 

Podence V, óleo s/ tela e impressão s/ plexiglass, 150 x 125cm

     PODENCE V surge na sequência das séries anteriores, cuja raiz assenta numa herança cultural os rituais de inverno com máscaras do nordeste transmontano.

Mantendo-se o fascínio pela máscara, procurou-se a partir de um referente milenar, uma interpretação contemporânea, marcando assim o confronto entre o passado e o presente, a tradição e a modernidade. É a máscara, ícone ancestral, registada sobre um material contemporâneo, que se sobrepõe a um rosto de hoje, procurando destacar as várias dicotomias associadas à máscara, que oculta e denuncia, oblitera e revela…

A camada exterior que o plexiglass “introduz” na pintura só por si funciona como máscara. É como um filtro que, por um lado, distancia o espetador da superfície da tela, por outro adiciona uma nova imagem e grafismo na pintura. Assim, a camada de vidro acrílico torna-se máscara duplamente, para além do reflexo que o plexiglass permite. É a imagem do espetador que, ao tentar interpretar a obra, se projeta para além da máscara que observa, interagindo com a pintura; é o reflexo do meio envolvente que vão adicionando ao rosto diferentes e sucessivas máscaras.

Balbina Mendes, janeiro de 2019 

 

BALBINA MENDES
Biografia

Nascimento em 1955, Malhadas, Miranda do Douro.
Mestrado em Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.
Residência e ateliê em Vila Nova de Gaia.
Realizou diversas exposições individuais em Portugal, Espanha, Bélgica, Áustria, EUA, Austrália e Índia: Portugal – Porto, Palacete dos Viscondes de Balsemão; Vila do Conde, Teatro Municipal; Covilhã, Tinturaria, Galeria Municipal; Vila Nova de Cerveira, Galeria Cervo; Aveiro, Museu da Cidade de Aveiro; Guarda, Galeria do Paço; Portalegre, Galeria de S. Sebastião; Leiria, Museu da Imagem e Movimento; Évora, Palácio D. Manuel; Penafiel, Museu Municipal; Coimbra, Museu Municipal; Lamego, Museu de Lamego; Régua, Museu do Douro; Vila Real, Museu da Vila Velha; Porto, Biblioteca Municipal Almeida Garrett, etc. Espanha – Ourense, Fundación Vicente Risco, e Zamora, Museu Etnográfico; Bélgica – Bruxelas, Livraria Orpheu; Áustria – Viena, Europasaal; EUA – Newark, Public Livrary; Austrália – Sydney, Consulado Geral de Portugal; Índia – Nova Deli, Galeria do Instituto Cervantes e Centro Cultural da Embaixada de Portugal, etc.

Participou em inúmeras exposições coletivas.
Está representada em várias coleções públicas e privadas em Portugal e no estrangeiro.

 

 

 

 

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